sábado, 28 de maio de 2016

Os sinos da igreja a badalarem 11:30 a se moverem , devagar e Novembro nos vidros , o café em frente a loja de gangas, o café com o mundo dentro, todos os dias ali paro . Todos os dias vejo a senhora triste, com a cruz de prata na mão enquanto sopra o chá e o sopro leva para a Dona Ofélia um sorriso escondido de uma senhora, idosa, pele enrodilhada, embrulhada na tristeza e na resignação, olhos com mãos que puxam os sorrisos enquanto o chá emana pequenas orações que sibilam dos lábios da senhora que trata daquela a quem tanto procura












- Vai ver que tudo se trata tudo se vai pôr bem









O medo de morrer, o medo de ir. A tosse que não me deixava, o susto do cigarro, o susto que eu sentia quando a dor me subia e me fechava a traqueia, e eu, assustado,devorado pelos estores no escuro, os lençõis que me vestiam como se eu fosse as cortinas metidas, sem dormir,a senhora do terço, a senhora da cruz









- cancro









E só o medo de pensar me causava desespero. Via-me enterrado , ali, já viste, mãe, eu no caixão ?! meu deus! E o coveiro, o sacana, a vir a minha mesa , isto é verdade, mãe, a vir a minha mesa









- já recebes-te?









Os meus olhos saltavam! Saíam como pedras lançadas de uma fisga









- hâ?









A Graça da cozinha a exclamar









- essa tosse









Eu na cama









- vou morrer









Fora dela e depois dela a falar com todos e a pensar









- quantos destes virão ao meu funeral?









O meu patrão a passar por mim , sempre calmo, descontraído e sério









- virá ele ao meu funeral?









E o caixão bem arranjado, será que iriam chorar por mim? uma pequena multidão, de luto, a minha roda , olhando feito abutres









- Pobre rapaz…também teve cá uma sina









E nisto, o patrão ao fundo , o coveiro a largar a mesa do café onde eu estava e eu a ver nele a pá a deitar terra e mais terra e a pedra da fisga a ir com mais velocidade e mais velocidade comigo na cama a pedir perdão e saber que posso morrer sofrendo com as agressões do cigarro e a pedra a ir com mais força, e a cruz de prata a balançar de um lado ao outro, os lençõis, cortinas onde os estores me apertam









- cancro









Não Não a perder a fala , a ter dificuldades para respirar, a ter dificuldades para emitir qualquer espécie de som, deixava de viver, deixava de namorar, apavorava-me isso! a pedra a embater na árvore e abrir um buraco , uma esfera, pequena, escura, os meus olhos feitos rato a espreitarem lá para dentro, a lembrar-me nesse momento quando perdi o dente da frente, deitado na cama a chorar em desespero que as raparigas nunca mais me vão olhar, nunca mais vão olhar para mim e apertava com mais força o choro no quarto da minha mãe e o Jorge , o cliente que atendo na companhia em silêncio ele









- ainda falas ?









E eu a pensar mas afinal









- ainda falas









A mexer os papeis no balcão e









- ainda falas









E pedra que me levava ver-me como o meu avõ sofreu até a última, morreu com o cigarro na boca, o cigarro queimou-lhe os pulmões, dilacerou-os por completo ,abriu crateras, sofreu…e eu ver-me assim ! todos no meu funeral, até o coveiro, e eu, onde?









- já recebeu?









E a Graça da cozinha sem graça nenhuma a dizer-me









- O coveiro veio-te buscar









- hÂ?









E a pedra já não estava comigo na cama já me acompanhava até ao café da vila nisto olhava para as pessoas a pensar Vou morrer olhavam para mim em silêncio









- Vai morrer









E a tosse cuspir-me a dignidade na cama que não é minha , nos lençõis que não são meus, nos estores que não são meus, na almofada que não é minha, a cuspir-me até ser jogado para a frente do médico enquanto a cruz de prata balançava na mão da









- Cancro









o jornal ao lado da secretária do consultório com a língua de fora dobrada Em paz e eu sentado depois de ter sido observado com as mãos fechadas uma sob a outra o médico









- Isso passa









e enquanto as orações sibilavam do chá, os sinos anunciavam as 12 badaladas e a da pele enrugada num silêncio que tremelicava nas bochechas como se bebericassem pequenos nervos semelhantes as gotículas das lágrimas que a gente deita quando reclama através do choro aquilo que nunca se teve e que se encontra agora a nadar no vazio dos seus olhos negros onde uma mão lhe passa pelos cabelos brancos ainda tratados e o rosto que se desvia , carinhosamente os olhos se deitam, se aninham no olhar da sua amiga que sorri sem ali estar presente nela









- Vai ver que tudo se trata tudo se vai pôr bem









Aí os sustos! eu no limoeiro apanhar as cascas para a infusão, eu no sobreiro com um saco aberto , a meio da noite, os outros escondidos, eu a girar , a girar nas mantas, nos lençõis, a girar , a girar o saco aberto para apanhar a criatura e desejar não quero morrer









- Cambuzinos ao saco !









e a voz dentro de mim que me apertava em silêncio , a voz que me assustava dentro de mim e ao mesmo tempo sai disparada de detrás do sobreiro e me joga fora como uma mola direito ao chão! saio a correr... a chorar , pelas pedras partidas da telha no chão, a passar as bananeiras em prantos , a limpar as lágrimas na minha corrida , apavorado, com o sobreiro atrás a dizer









- Então









e num segundo tinha-o deixado para trás juntamente com a horta do meu tio juntamente com a noite e juntamente com os meus amigos que agora me surgiam quando me julgava sozinho e me rodeavam e me abraçavam já sob a luz do candeeiro









- isso passa









O médico









- Vá, fique bem









Novembro nos vidros , o café em frente a loja de gangas, o café com o mundo dentro, a senhora do terço









- afinal não era nada









O coveiro a largar uma mesa onde um rapaz de olhos arrepiados o olhava









- o diploma, do curso!









A senhora do terço num espelho a dizer-me









- não passa de um sonho uma ilusão perfeita









os pombos sozinhos na praça, uma revista perdida, um assobio do vento, um pedaço de frio nas pálpebras e









- não passa de um sonho uma ilusão perfeita









Os sinos da Igreja a chegarem as doze badaladas e eu acordar









- Será que sonhei?

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