quarta-feira, 4 de maio de 2011

Aprender a imitar a água

Um dia, quando as pedras deixarem de ser pedras, quando os barulhos da água deixarem de soar no pássaro poisado sob o galho cuja verga é a folha do meu rosto , um dia , quando os homens forem um só instante e num só segundo eu me tornar rio, para desaguar na existência da liberdade e desaguar na sede do teu amor, sem ritos e proclamações , eu serei um breve momento de um voo de pássaro , na ponta do bico, as minhas letras, as minhas vidas , as minhas vozes, os meus papéis e o silêncio exterior . Minto. Minto quando digo que amo o silêncio, não gozo, prefiro o barulho ao retrato de uma menina de vermelho que passa na rua em sacola de renda e ela não leva o  silêncio mas o barulho das solas na calçada Tac Tac , vejo o pobre velho Antunes, debaixo do umbral da varanda , com aqueles olhos caindo sobre nós , interrogando,  olhos com mãos que nos abrem as profundezas , entra dentro de nós sem quase pedir permissão, mas  pedindo… e  não nos é inegável dito previlégio,  vê-lo ali , com pequenos pedaços de pão na mão, as metades de uma vida inteira no polegar e na ponta do indicador , em pedacinhos minúsculos que rolam até alçar a calçada e oiço-o a pensar sem ser eu quem aqui está  «Um dia, quando as pedras deixarem de ser pedras »  E lembro-me do meu velho amigo Jorge de Sena , a mesa , as cadeiras velhas  , como um homem mata saudades numa cadeira e ama  invísivel sempre presente vida, eu lembro-me de me dizeres , sem nunca me entediares, que a escrita podia ser « o reverso glorioso dos erros»  os meus olhos procuravam-te achando-te no escuro ausente de luz , nas tuas unhas ainda rosadas pela juventude, lembro-me do Antunes, se calhar, se calhar ele devia estar aqui em vez de estar com aqueles parvos pássaros, deixa-o,  cai o livro da prateleira e com isto toca-te o pensamento que me acompanhava na minha deambulação  « Um dia, Marcio, iremos amar como uma pedra» Talvez. Não sei, nunca tinha pensado muito nisso, tenho medo as vezes de pensar, as vezes nem penso, apenas sinto percebendo e não comprendo porque percebendo temos que dizer que comprendemos , as pedras não pensam, as ribeiras não falam,  os pássaros não levam a porra de vida nenhuma no bico, os animais nos ignoram,  embargando no silêncio que eu detesto, a água da ribeira , dos cheiros  dos sustos das malditas cobras que aparecem num segundo e noutro fogem, esquece. Deito os papéis para o lado, rasgo a caneta , não rasgo, é apenas a  forma para dizer como me sinto , a caneta, para o lado,  o Sena observa-me na minha santa impaciência e nem um pio me diz. Atesta-me o pássaro que resolve aparecer e poisar ao lado da janela. Mais calmo agora. Que cor dou ao pássaro? Pergunto. Que se dane, que te danes pássaro, ficas rojo , ou rosa, ou vermelho, porque razão vou fazer de ti Preto? Não quero aqui nenhum pássaro preto, quero um amarelo, bonito, com penas compridas e  linhas traçadas de um porta-penas nas suas plumas lindas, quero que ele cante, saltite de galhinho em galhinho , não o quero dentro da gaiola, não o quero ver morto, quero vê-lo a desenhar circunferências no céu, entrar sobre ele e quero vê-lo a ouvir Tracy Chpman, quero uma tartaruga que desenhe um círculo na pequena água côncova da ribeira quero ser pedra e aprender a imitar a água.