sexta-feira, 29 de março de 2013

Como Arrumar a casa

Como arrumar a casa

A cómoda em madeira desgastada guarda todos os meus ursinhos, o Pico, Fuuffu,o Bolinha, sorriem para mim e são os meus amigos nas camisolas que a mãe arrumou;
- Santo anjo do Senhor, santo anjo da guarda,vele por mim de dia e de noite
 foi bordado com pequenas linhas azuis e  enfeita o quarto que o Pai António fez, a prima Rosa,deu de presente o candeeiro com a cor do seu nome, o anjo da guarda,também tem uma cor no quadro,a mãe , trouxe os amigos da almofada que respiram comigo o doce das cortinas brancas, suaves como quando estou nos braços do pai António
- braçinhos quentinhos e fofinhos
 Arruma as coisas com uma prontidão imediata, coloca na cesta os ovos da tia Rosa,na sala, o sofá é limpo em todos os pormenores, um canto com um papel da loja do Senhor Janeca:
- Celebremos na Páscoa o Perdão
O pai diz que o perdão faz crescer as pessoas e que uma casa arrumada são as Ideias colocadas em ordem.Tudo o que eu me lembro é que era um bébé sempre muito sereno e muito sorridente,nunca me pareceu outra coisa que senão  isso,eles andavam felizes, a dispensa pelo que me recordo:
- existo na ordem de uma medida correta
começa com os frascos de um arroz em Inglês Rice, os temperos da cozinha Oriental todos alinhados como um platão
-As grandes naturezas produzem grandes vícios, assim como grandes virtudes.
E a grande virtude tornada pequena num frasco de especiarias, os taparués, empilhados mas numa simetria reveladora de sua Mestria, Fazendo as pequenas coisas bem, faremos acontecer as grandes coisas, dizia o avô enquanto construía o primeiro andar da casa e o padre a abençoar o pirralho enquanto os óculos detinham as passagens
- a fé, deve ser revelada nas obras
 O pai diz que eu devo crescer,que se eu crescer , também poderei mostrar ao Senhor Jesus o meu amor por ele,gosto imenso deste cheiro dos livros arrumados na biblioteca da casa,quando for grande como o meu Pai António,vou colecionar canetas carissimas,colocar os meus peluches no escritorio e ao lado dos livros de Matémática a fazerem companhia aos da Literatura poética. Vou estudar,colecionar ferramentas ,chaves de fendas,martelos e esquadros,vou resolver os problemas quando a sanita avariar,trocar as pilhas ao comando da campainha,quando a minha Mulher quiser vou às compras no jipe e levo o farrusco,aquele narizinho pretinho e molhadinho é tão fofinho,fofinho fofinho foifnho!!!
Diz a mãe  afagando-o em miminhos enqunto brinca com as suas ferramentas de plástico,coloca-o no berço,lê uma passagem do Evangelho e o pirralho adormece,desce as escadas e acaba de limpar a coleção de chávenas de café,passa pelas moedas de ouro que estão na sala ao lado de convivio,todos os prémios ganhos em desporto,
- sempre gostou muito de competir
coloca a ultima taça ganha ao lado do Melhor Pai do Mundo, 
- Bom marido, Lucrécia
e a Lucrécia a interregar o Bom pastor
- o que pedis de mim bom Pai?
A arrumação perfeita,a sala dos troféus é cuidada todos os dias,a sala,disposta com as cortinas a cantarem salmos de louvor e gratidão,a estande e os diplomas  cumprimentam a lareira, lume do qual ganhou pastor, louvando versos nas douradas pontas flamejantes
-O Senhor é o meu pastor, nada me faltará
E os anjos a serem retirados do móvel para o chá, a loiça fina com os fios laranja do irmão sol no rebordo a aquecerem os lábios da Tia rosa e do avô Francisco, alguns bolinhos dispostos pela mesa com o pão e a linguiça,o avô Francisco a escrever um versosito e a entregar um medalhão ao menino que dorme,o senhor Padre diz que Devemos crescer e não minguar,Uma casa arrumada, ideias no lugar, a procissão vai até à cozinha e os tachos apertados entre si
- que altura danada esta para sermos tachos de aluminio
os alhos e as cebolas na porta debaixo,a máquina do café aquecer e a procissão
- Vinde Senhor Jesus
e jesus Nosso Senhor na sala  a conversar com os diplomas e com o fogo, enquanto a loiça a sair da máquina e os bolos a serem preparados,as toalhas arrumadas por ordem: as da sala numa gaveta,as da cozinha noutra, os napperons com Francisco e Jacinta
- vimos agora para aqui fazer não sei bem o quê
a vela acesa proclama a fé do napperon e o chá quente da sala a entreter-se nas entranhas,a tia ao fundo, corta uma fatia de pão repara que tudo ocupa uma ordem perfeita na mesa,o salmo na ponta da chama
- Onde há amor existe a ordem
Diz o Bom pastor à Senhora Lucrécia que vai contente para casa depois de ter saído da fonte por onde os milagres se fazem e as pedras se tornam castelos
- onde há amor existe a ordem
come um pouco de pão e bebe um pouco de leite eleito:  a melhor Vaca do Ano! Pelo que sei era uma Senhora dedicada,religiosa,boa profissional,o bébé,está a ainda a crescer, um dia,um dia... há-te mostrar as obras que tiver a mostrar,por enquanto, Jesus, pede que arrumemos a sala,coloquemos cada coisa no lugar
- Não vá o Diabo Têce-las e cairmos do Cavalo
diz o Padre da Casa, arrumemos as flores nos vasos e lhes dê de beber, as mantas dobre-as
- se não as dobrar-mos poderemos atrair coisas más
coloque a roupa suja para lavar que Deus não aprecia os maus cheiros,arranje os estores que está para arranjar,arrume o quarto,as camisas no camiseiro,as calças na gaveta, gravatas: sejam sãs, tire-as do plástico;guarde as roupas de verão, use as de inverno,seja limpo, não pelo muito que limpa mas pelo pouco que suja,arrume a garagem,não aconteça quando o Senhor chegar,  encontrar peúgas e boxeres por aí e o fogo a querer se chatear!





terça-feira, 26 de março de 2013

Como Fazer a Barba



Lembro-me quando tinha 10 anos. O primeiro pêlo. Passava horas durante a tarde a olhar para o espelho do ciclomotor do meu pai Afonso. 
Numa noite, uns larápios lá vindos de Grândola,roubaram a motorizada de 4 velocidades  de cor doirada ao meu pai, o meu irmão tinha saído de madrugada, a televisão ligada,os grilos  num canto de um móvel com uma fotografia familiar,enchi-me de pena quando soube da noticia da minha mãe ter fugido com outro,nunca vi o meu pai chorar. Acordava  durante as noites e dava com ele na sala, Fumava um cigarro com a ponta direccionada para mim enquanto as frases encorpadas de uma personalidade exterior a ele :

- roubaram-ma

E reclamava ,exigia ao tempo ,a Deus, aos anjos e a quem mais haja por aí,   lá que me dessem o que é meu,pêlos…assim já podia ajudar o meu pai e eu podia ser Homem e tentar perceber as coisas que ocorriam, já suportava andar pela aldeia tendo perdido aquela motorizada, já podia de peito inchado e erguido ,porque a barba me concluía, já podia, saber o que  era a vida no sentido das palavras da Sra. Silvina lá da aldeia:

- quando tiveres barba na cara filho…

Corria para a casa de banho. Trancava-me a sete chaves. Pegava na Gillette, na espuma de Barbear,molhava o rosto pueril e moreno,os olhos verdes enfiados no espelho,o fio de um castanho cor de fogo,um sorriso inocente e ansioso pelos anos vindouros; ao lado, um creme hidratante para amaciar e amolecer os pêlos ( ausentes ainda)para facilitarem o deslizamento da lãmina,olhava para os hidrantes do meu pai

- Vou ser Homem

Consultava um livro, sabia que a melhor hora para a desfazer ( e como me imaginava com uma barba perfeita) seria à noite, a oleosidade da pele que é já  em maior quantidade ajudar-me-ia ,ouvia os amigos mais velhos a dizerem entre si nos treinos de futebol:

- primeiro molhas o rosto com a água quente para abrir os poros

A minha ãnsia aumentava! E fazia ,mesmo não tendo pêlos, tudo na forma correta: a lâmina  no sentido do crescimento do pêlo, os cremes tudo da Natura

- os melhores

 E passava os meus dias em busca do tal pêlo grosso mas nada . Passava uma e duas e três e quatro,de seguida, pegava no bálsamo e colocava em abundância. Ardia e não acreditava quando me lembrava:

-roubaram-ma..!

A minha mãe pegava em mim de manhã e saíamos pelas traseiras da casa.Eu não julgava a minha mãe

( mas não entendia porque razão tinha que ir ter com o amigo à beira da estrada )

o que eu sei é que aquilo era desconhecido para o meu pai que não tinha barba na cara,apenas um ligeiro capim branco. Anos mais tarde dei com ele a olhar para o espelho e numa voz curva a reivindicar ,reclamava,exigia ao tempo ,a Deus, aos anjos e a quem mais de direito  lá de cima que lhe dessem o que era pertença sua,( eu pensava para mim que devia ser falta de barba na cara) se eu ao menos… nessa altura os pêlos tivessem aparecido quando eu suplicava

- só um pêlito…

Podia ter ajudado um pouco mais , a motorizada roubada foi encontrada no mato,Deixa o resto, junto aos policias ele dizia:

- era minha

Enquanto a personalidade exterior dele pegava em mim e me vestia com a dor ali a bramir 

- ela era minha…

A dor rendia-me,braços ao ar!!? Perguntava: o que devia fazer? A casa estava perdida.  A casa era pequenina Sr.Doutor,janelas  pirralhas de onde à noite sons me deixavam constrangido e os sons me diziam:

- que vergonha isto

E que vergonha um Homem não ter barba na cara, que vergonha nem um pêlito para uma pessoa erguer o peito em importância, dinheiro nunca houve, não me lembro, recordo mais o que me faltava do que aquilo que tive,as janelas que não eram grandes , pequeninas e cheias de cor diferentes das da sala,o cão piegas sem uma coleira decente,o meu pai constantemente entrava no quarto a perguntar:

- a vossa mãe?

Eu não dizia nada.  Calava e morria naquele crime. Imaginem o que é uma criança passar por isso, os sons apareciam assim que ele fechava a porta e não eram só as janelas que eram pirralhas e barulhentas também, o móvel da casa do meu tio em Lisboa na Quinta da Taínha, quando a minha tia o via de bigode molhado pelo vinho a cantar o fado no meio da sala, elas, idênticamente desinquietas a proferirem como se tivessem um cinto  nas partes:

- que vergonha isto

O pai ainda não ganhou barba na cara e todos os dias olha para o espelho num constante monólogo:

- Ela era minha

 o filho, ganhou uns tostões no loto2,cresceu, adquiriu barba comprida, de desfazer ,todos os dias , de manhã à noite,  o tio, foi visto a correr ao lado dos comboios na linha do Cais de Sodré na tentativa de ser pássaro e da motorizada sabemos que não ficou resto algum para contar história.